segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Ensaio sobre o recomeço


Meu profundo reconhecimento e gratidão á aqueles que aprenderam a recomeçar e me inspiraram com os seus exemplos. A aqueles que não sucumbem ao peso do fim, mas que enxergam a semente de um novo começo. Que não se conformam em estar no mundo, mas acreditam na transformação de seu próprio mundo (porque o nosso mundo é apenas aquele que moldamos). E... silenciosamente... de dentro de um lugar misterioso, um santuário oculto dentro deles mesmos, conseguem extrair a força para novamente, começar. E continuar. Que eu também enxergue o caminho para o meu santuário. E quando eu esquecer o caminho, nos momentos em que eu me perder por outras veredas, brilhantes e atrativas, mas que acabem (uma ou outra vez) em nada... que os santos do meu caminho, os santos que vivem e os santos que se foram, me ajudem a reencontrar o sagrado lugar.
E que eu possa remodelar, com argila nova e água fresca, todas as minhas criações. E que eu possa devolver á terra aquelas que não me servem mais, que o olhar para trás não me impeça de seguir adiante.
Que eu tenha sabedoria para me render prontamente diante do inevitável. E que então, nesse momento, eu sinta a rendição como uma manifestação da minha força.
Que eu sinta gratidão por tudo aquilo que fui ontem, mesmo que não tenha sido o que gostaria de ser, as sementes foram plantadas.
E que eu possa apreciar graciosamente aquilo que sou e onde eu estou.
E olhar o novo dia que amanhece. Com suas possibilidades ocultas e fascinantes, e que já faço minhas.
Que o meu olhar se renove. Sempre e para sempre.
Feliz 2012.

domingo, 18 de dezembro de 2011

A arte de quebrar espelhos


" NÃO VEMOS AS COISAS COMO SÃO, NÓS AS VEMOS COMO SOMOS"

Talmud

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Desnecessário denominar

"DENTRO DE NÓS HÁ UMA COISA QUE NÃO TEM NOME, ESSA COISA É O QUE SOMOS."

José Saramago

E...

Quem entre nós consegue determinar com a exatidão das palavras, aquilo que se é, em seu ser mais profundo e oculto entre suas (múltiplas) superfícies?
Eu não.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Fazendo das palavras dela minhas palavras...

"E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com o meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existem o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo."


Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem.

domingo, 31 de julho de 2011

A festa de Aline

Aline nasceu dez anos e mais um dia antes de mim, e sempre nos uniu a coincidência dos nossos aniversários. Todos os seres humanos próximos buscam se unir em pequenas e grandes coisas, e essas pequenas muitas vezes são as mais importantes.

Ontem á noite fui á festa de Aline, num castelo medieval onde havia muitos arqueiros e um bárbaro de gritos guturais e de cabelos longos ruivos que gesticulava obscenidades inocentes para uma plateia faminta e sedenta. A plateia aplaudia e pedia mais.

No meio do salão, alguns mortos-vivos pendurados pelas paredes me olhavam, ora de soslaio, ora tão penetrantemente que ás vezes até me deixavam assim meio encabulada.

Um deles me disse que seu nome era James. James Douglas Morrison, repetiu ele devagar para ter certeza de que se faria entender. Eu olhei para ele mas ele olhava apenas para si mesmo. De seu pescoço saltava um grande pomo-de-adão que caracterizava uma masculinidade predatória, ele era mesmo um homem impressionante, pensei.

No outro extremo do salão de bailes havia outra jovem e simpática loura, não seria Aline a única loura da festa, afinal. Essa outra loura, dissimuladamente me olhava. Numa voz balbuciante me disse ser seu nome Norma, mas que eu ficasse quieta a esse respeito, seus amigos a chamavam Marilyn.

Norma me confidenciou os seus dramas de mulher, porque todas as mulheres compartilham seus pequenos grandes dramas. Eu também eu também, tive de concordar com ela algumas vezes, ser uma mulher solidária, porque eu também tenho os meus ... Mas sua fala doce e falsamente tímida foi ficando perturbadora á medida que ela prosseguia. A música de bardo do bárbaro já não se sobrepunha ao barulho do meu coração louco e descompassado, de maneira que tive que deixar Norma e me dirigir ao toillete, apressada.

Não notei a fila e ia me desviando de outra garota loura que vociferou de raiva por eu ter passado á sua frente, ela discutia com um namorado ocasional algo que enchia seus olhos de lágrimas. Parecia só e desiludida em sua bad trip e talvez me enxergasse com olhos irreais, ela olhou-me com raiva infantil e eu esperei um xingamento mas de sua boca saiu um patético “looser”. Meu riso cascateava por dentro, tive vontade de retrucar com a frase de Clarice “Se eu fosse uma vencedora eu morreria de tédio”, mas me calo e a deixo passar.

Ela entra no banheiro e eu recomendo ao seu namorado cautela ao lidar com as mulheres instáveis. Ele me sorri, curioso e chapado, e conversamos amenidades até que ela saiu com o rosto transformado e úmido.

Eu entro, retoco a minha maquiagem e tento esquecer os meus mortos, que eles descansem em paz ou tentem viver uma nova vida, faço votos insinceros.

Ao sair procuro por Aline e de repente todos estão procurando por ela. Aline circulava leve, e borboleteando entre uma mesa e outra se dividia entre diferentes rodas, família, amigos, trabalho, e não era essa a divisão? Ocorre que ás vezes os limites são muito tênues e tudo acaba se misturando numa anárquica celebração de muitos anos de vida.

Quanto á mim, o que me resta é entregar-me á música e ao momento, á mistura de sons e silêncios, excitações e pausas. Que me conduziam e me faziam sentir minhas incômodas densidades se esvaindo em leveza, em prazer, em êxtase, em nada.

A música do bárbaro tinha o dom de aquietar os meus demônios.

Acordo na manhã seguinte com a alma leve e o corpo doído, a me lembrar que a balada é para os jovens com “x”. O som do telefone estridente e alguém me chamando para o almoço, respondo que já vou, apenas preciso de um tempo para um café bem forte.

Dedico este texto a Aline, que faça muitos e felizes aniversários.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Palavras para um anjo


Angels


I sit and wait
Does an angel contemplate my fate ?
And do they know
The places where we go
When we're gray and old
'Cause I've been told
That salvation lets their wings unfold
So when I'm lying in my bed
Thoughts running through my head
And I feel the love is dead
I'm loving angels instead


And through it all she offers me protection
A lot of love and affection
Whether I'm right or wrong
And down the waterfall
Wherever it may take me
I know that life won't break me
When I come to call she won't forsake me
I'm loving angels instead

When I'm feeling weak
And my pain walks down a one way street
I look above
And I know I'll always be blessed with love
And as the feeling grows
She breathes flesh to my bones
And when love is dead
I'm loving angels instead


Anjos

Eu sento e espero
Um anjo contempla meu destino?
E eles conhecem
Os lugares onde nós vamos
Quando estamos grisalhos e velhos?
Pois me foi dito
Que a salvação deixa as asas deles estendidas
Então, quando eu estiver deitada na minha cama,
Pensamentos correndo pela minha cabeça,
E eu sinto que o amor está morto,
Estou amando anjos em vez disso...


E através disso tudo ela me oferece proteção,
Muito amor e afeição,
Esteja eu certa ou errada.
E debaixo da cachoeira,
Onde quer que isso possa me levar,
Eu sei que a vida não me arruinará.
Quando eu vier chamar ela não me abandonará.
Estou amando anjos em vez disso.. .

Quando estou me sentindo fraca
E minha dor caminha por uma rua de mão única,
Eu olho para cima
E sei que serei sempre abençoada com amor.
E conforme o sentimento cresce
Ela aspira carne nos meus ossos.
E quando o amor estiver morto,
Estou amando anjos em vez disso...

Música de Robbie Williams, para Ana, o meu anjo.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Quero continuar sendo...

"Se você nunca foi chamada de desafiadora, incorrigível, mulher impossível...tenha fé...ainda há tempo"

Clarissa Pinkola Estés, em Mulheres que Correm com os Lobos.

domingo, 17 de julho de 2011

Simples e verdadeiro...

" O que faz a vida valer a pena é a diversidade das coisas vistas, conhecidas e tentadas"

Contardo Calligaris

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O todo e todas as suas partes (“The Big Picture”)



Existe uma expressão em inglês que sempre me vêm á mente, “the big Picture”.
Encontrei traduções meio imprecisas, coisas como “a grande cena” ou “o grande quadro”, que eu acredito que não se aproximam muito do original...
Mais especificamente, a frase que constantemente me vêm á cabeça é que se não estou entendendo algo nesse exato momento é porque não consigo ver “the big Picture”.
Se não entendo algo agora é porque não sou capaz de encaixar o que vejo no contexto final da grande cena, do grande quadro.
Essa minha mania de tentar entender todas as coisas que me tocam vem de longe.
Apenas para exemplificar essa quase patologia que ás vezes deixa as pessoas ao meu redor um pouco intrigadas...
Há uns 15 anos atrás, eu e minha amiga Jenifer tínhamos um jogo. Quando algo nos tirava dos eixos, costumávamos perguntar á vida o porquê de aquela situação estar acontecendo. Perguntávamos de coração aberto e da maneira mais direta possível, e esperávamos por uma resposta, que SEMPRE vinha. Era incrível, a resposta sempre vinha, mas de jeitos diferentes. Para ela, que eu me lembre, a resposta vinha muito direta, inteirinha e de uma vez. Poderia estar num trecho de um livro que ela abrisse ao acaso, por exemplo.
Para mim, a resposta vinha fragmentada, como num quebra cabeça que eu ia montando até chegar á uma conclusão final. The big Picture.
E então as coisas iam fazendo sentido, mas era como assistir a filme de trás para frente, montando os quadros a partir de fragmentos, aparentemente desconectados entre si.
(Sim, eu faço isso até hoje, e tudo o que recebo são fragmentos, ainda.)
O que me lembra outra cena do meu passado, quando eu estava em NY visitando minha amiga Carla, em 2002.
Fomos ao MOMA, o museu de arte moderna, que na época estava no bairro do Queens.
Havia uma fila para olhar o quadro que ilustra esse post, “A noite estrelada”, de Van Gogh. As pessoas iam, uma a uma, olhando o quadro e depois saíam.
Eu não pude sair. Eu fiquei estática e fascinada, olhando aquele quadro. Ele teve um efeito hipnótico sobre mim, e eu me lembro dos detalhes da pintura até hoje, como se estivesse na minha frente agora. O segurança do museu teve que intervir para me tirar dali, porque eu simplesmente não me dei conta de que já era hora de sair.
Cada pincelada de Vincent apontava para uma direção diferente. Havia círculos, traços á direita e á esquerda, numa dança sem sentido de cores e formas.
As estrelas não se pareciam estrelas, á primeira vista. A lua não se parecia com a lua que estamos acostumados a ver no céu, e a cidade “adormecida” não parecia dormir.
Ao dar um passo atrás para contemplar o grande quadro, vi os elementos caóticos se compondo e senti a intensidade da noite mais brilhante, magnífica, única, sublime, que transmitia a visão de um ser humano que jamais escondeu a ALMA que carregou (ás vezes atormentada, como um fardo nas costas de um anônimo trabalhador).
Naquele momento, eu vi a minha vida naquela grande cena
.

Quadro de Vincent Van Gogh, "A noite estrelada"

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Libertar (se) para poder AMAR

"Para o apego, a consciência não é necessária; ao contrário, a consciência é a barreira. Quanto mais consciente você se torna, menos você será apegado, porque a necessidade de apego desaparece. Por que você quer estar apegado a alguém? Porque sozinho você sente que você não se basta. Você sente falta de alguma coisa. Algo fica incompleto em você. Você não é inteiro. Você precisa de alguém para completá-lo. Daí, o apego. Se você está consciente, você está completo, você é inteiro - o círculo está completo agora, não está faltando nada em você - você não precisa de ninguém. Você, sozinho, sente uma total independência, uma sensação de inteireza.
Isso não quer dizer que você não amará as pessoas; ao contrário, somente você pode amar. Uma pessoa que seja dependente de você não pode amá-lo: ela o odiará. Uma pessoa que precisa de você não pode amá-lo. Ela o odiará, porque você se torna o cativeiro.
Ela sente que sem você ela não pode viver, sem você ela não pode ser feliz, então, você é a causa das duas coisas, da felicidade e da infelicidade dela. Ela não pode se dar ao luxo de perdê-lo e isso lhe dará uma sensação de aprisionamento: ela é sua prisioneira e se ressentirá disso; ela lutará contra isso.
As pessoas odeiam e amam ao mesmo tempo, mas este amor não pode ser muito profundo. Somente uma pessoa que seja consciente, pode amar, porque esta pessoa não precisa de você.
Mas, então, o amor tem uma dimensão totalmente diferente: ele não é apego, ele não é dependência. A pessoa não é sua dependente e não o fará dependente dela: a pessoa permanecerá uma liberdade e lhe permitirá permanecer uma liberdade.
Vocês serão dois agentes livres, dois seres totais, inteiros, se encontrando. Esse encontro será uma festividade, uma celebração - não uma dependência. Esse encontro será uma alegria, uma brincadeira".

Osho, The Book of the Secrets.

domingo, 24 de abril de 2011

E ao notar a sombra...








Confesse suas falhas ocultas.




Aproxime-se daquilo que considera repulsivo.



Ajude a quem acredita não poder ajudar.



Deixe ir aquilo a que está apegada.



Vá aos lugares que te assustam.





Conselho de seu mestre para a iogue tibetana Machik Labdrön, extraído do livro "Os lugares que nos assustam", de Pema Chödrön.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Autoconfiança é seguir em frente...em qualquer circunstância!




Nosso maior medo não é o de sermos inadequados.
Nosso maior medo é o de sermos poderosos além das medidas.
É a nossa luz, não nossa escuridão o que mais nos apavora.
Perguntamos a nós mesmos: Quem sou eu para ser brilhante,
esplêndido, talentoso e fabuloso? Na verdade, eu pergunto:
Por quê não? Você é um filho de Deus! Bancar o pequeno
não serve ao mundo. Nada nos esclarece no sentido de nos
diminuirmos para que outras pessoas não se sintam inseguras
em torno de nós. Todos temos luz. Ela não está apenas
em alguns de nós; e quando deixamos nossa própria luz
brilhar, inconscientemente damos a outras pessoas
permissão para fazer o mesmo. Quando nos libertamos
de nosso próprio medo, nossa presença automaticamente
liberta outros.

Discurso de posse de Nelson Mandela, 1989. (Prêmio Nobel da Paz).


Post inspirado no artigo de Osvaldo Shimoda, "O despertar da autoconfiança"

sábado, 29 de janeiro de 2011

Gatos sabem tudo!


No post anterior, a menina com o gato diz muito sobre o que sou, e sobre a criança que fui.
Desde pequena busco a companha deles, amo sua essência e sei que eles são capazes de entender a minha.
Entre tantos famosos escritores amantes de gatos, e a quem admiro... Lygia Fagundes Telles e seu inesquecível Rahul, em “As horas nuas”, revela perfeitamente o que é a personalidade tipicamente felina. Pablo Neruda, em “Ode ao Gato”, uma linda declaração de amor. Cora Rónai, Otto Lara Resende. Mas gosto especialmente do texto abaixo, de Arthur da Távola. Acrescento que, se todos nós aprendêssemos com eles, a amar completamente, porém sem submissão, viver e ter amigos, porém sem deixar de sermos nós mesmos, e nos entregar ao descanso completo e ao silêncio total, quase como uma meditação diária... o mundo, definitivamente, seria um lugar melhor.



Simplesmente gatos – Arthur da Távola


“ Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso...nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.
Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu.
Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado?
Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?
Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula.
Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.
"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio e espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer.
Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.
Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.
Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência.
Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.
O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta.
Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.
O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.
Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.
O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!
Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo ( quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo.
O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e preserva como a um templo.
Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio.Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem."