sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A pesca

Há momentos em que o barulho insano do mundo me entorpece.
Há momentos em que não sei mais o que é meu e o que sou eu,
Há momentos em que meu riso é desconforto, e minha dor, paz.
Há momentos em que a luz me parece cegar, e tudo o que peço é o escuro, o recolhimento, o voltar para casa.
Há momentos em que o "demais" parece pouco, e não me satisfaz a alma.
Há momentos em que só meu calar traduz meu sentir.


Dediquei o texto seguinte a um homem especial. Mas ele também é dedicado á aqueles que sabem apreciar o silêncio, e extrair dele a sua sabedoria.

A pesca


Um dia, andando por uma rua paralela á sua, notou algumas folhas douradas que caíam. Era outono, e nessa época do ano sempre se lembrava do seu avô, ele tinha sido um avô muito importante para ela. No outono, seu avô fazia aniversário, e esse era um evento familiar muito marcante para todos. Era um homem muito respeitado e a quem as pessoas gostavam de escutar. Mas com ela era uma relação diferente: ele gostava de escutá-la, e fazia isso com tal atenção que ela se sentia importante.
A família do avô era de pessoas nativas daquelas terras, desde antes que os primeiros colonizadores chegassem. “ Minha mãe, sua bisavó, se casou com um branco e eu e meus irmãos nascemos assim, meio a meio” – era assim que ele sempre começava a contar sua história para ela.
O avô gostava de muitas coisas. Gostava de ir fumar seu charuto na varanda, quando anoitecia e estava frio. Gostava de observar o movimento dos pássaros e das pessoas. Gostava de plantar e trabalhar a terra. Também gostava de dirigir uma caminhonete velha, a qual cuidava com carinho e zelo, apesar das implicâncias da avó. Era divertido para ela observá-los discutir acaloradamente sobre os mesmos assuntos sempre, porque ela sabia que eles não estavam zangados de verdade.
Mas havia uma coisa que o avô gostava mais do que todas as coisas; era a pesca. A pesca era algo importante para ele, assim como a igreja era algo importante para a avó. E ele ia ao seu lugar favorito de pesca, quando o tempo estava bom e as águas tranqüilas, e sempre voltava com um peixe para que a avó preparasse em casa.
Era sempre apenas um peixe: um peixe grande (pelo menos assim o parecia a ela, naquela época), bonito e de cores brilhantes, que seria um jantar especial para a família...
O avô geralmente ia pescar sozinho, por isso um dia ela estranhou quando a avó a acordou de manhã bem cedo: o avô iria pescar e gostaria que ela fosse junto. Aquilo realmente a fez sentir muito especial. Havia outros primos, garotos e maiores do que ela, que nunca tinham sido convidados a pescar. Mas ela havia sido convidada.
Foram os dois ao amanhecer, na velha caminhonete do avô. Apesar de a caminhonete fazer um pouco de barulho, por dentro era bastante confortável, e ela se sentia feliz por ver o sol nascer de um lugar bem alto. O avô dirigia tranqüilo, e era como sempre: nada poderia desviá-lo do caminho.

Em um ponto da viagem, ele perguntou se ela trouxera seu chapéu. Ela respondeu que não tinha um chapéu, e então ele riu, e disse que ela deveria ter um, pois todos os pescadores têm um chapéu. Estendeu a mão por baixo do banco do carro e tirou de lá um chapéu, que encaixou sobre a cabeça dela. O chapéu era grande demais era difícil para ela enxergar com ele. Mas quando o avô perguntou se ela havia gostado do presente ela respondeu que sim, que aquele chapéu era realmente muito bom! E o avô riu mais ainda.
Quando chegaram ao lago, ela assistiu curiosa ao avô preparando os utensílios da pesca: havia anzóis pontiagudos e curvos, varas de pescar mais curtas e outras mais compridas, falsas iscas e iscas vivas. O avô preparou o equipamento dela primeiro: uma vara curta e leve, com um anzol curvo e uma isca viva espetada nele. O inseto se parecia com um pequeno gafanhoto, sua cor era um castanho parecido com cor da casca de uma amêndoa. Ele recomendou que ela tivesse cuidado e mantivesse o anzol longe, para não se machucar. E em seguida ele preparou seu próprio equipamento, e ela notou que ele tinha o mesmo jeito de sua mãe quando se concentrava em alguma tarefa: fixava o olhar e, ao mesmo tempo, levantava levemente uma sobrancelha.
Eles foram caminhando pela margem até uma plataforma de madeira que adentrava até a metade do lago. O avô ia á frente. Ele conversava muito baixo, mesmo não havendo mais ninguém ali além dos dois. Ele a instruía sobre o que fazer e quais cuidados tomar.
Subiram na plataforma e foram caminhando devagar, e o avô fez uma pausa, como se a mais importante instrução viesse.
“Quando você pesca, não pode fazer absolutamente nada: não pode falar, não pode se mexer e nem pode pensar em nada. Porque o peixe é astuto: ele vai ler o seu pensamento, a sua intenção de capturá-lo, e então vai fugir de você.”
“Mas como? Não consigo parar de pensar nem por um segundo! Pensar em parar de pensar já é pensar!”
“Então apenas diga para a sua cabeça fazer um pouco de silêncio. Peça aos seus pensamentos para não fazerem tanto barulho agora.”
“Todos os peixes são capazes de ler meus pensamentos e saber que quero pescá-los?”
“Não todos os peixes. Apenas o peixe que você está destinada a pegar. Para os outros peixes, isso não é importante, e os peixes não dão atenção a aquilo que não é importante para eles.”
Sim, aquela era mesmo a instrução mais importante. Tão importante que, muitas vezes e ainda mais agora, ela pedia insistentemente para a sua cabeça fazer um pouco mais de silêncio. Para um melhor efeito, fechava os olhos e tentava sentir o vento frio e o sol tímido em seu rosto. Ou a madeira da plataforma rangendo sob seus pés. Ou ouvir o barulho suave das águas do lago, e ver a habilidade do avô ao enganar o peixe. E era quase como se ainda fosse aquele outono; e ele estivesse ali.

Esse texto é fictício. Dedico a Francisco, sempre presente.

2 comentários:

  1. muito legal esse texto, uma nostalgia...

    te amo


    bj

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  2. Sim, vários elementos nostálgicos...
    Te amo muito, sempre bem-vindo!

    Bjs

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